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O Papel da Esquerda na Construção de uma Cultura de Respeito a Dignidade Humana



Estava em um ônibus no Rio de Janeiro e uma conversa entre a trocadora e o motorista me chamou a atenção. A trocadora relatava que na semana em questão um rapaz de dezessete anos havia sido assassinado pela polícia em seu bairro. Aos risos a mulher contava que a bala havia atingido o intestino do garoto e que quando sua mãe chegou se deparou com as entranhas de seu filho espalhadas pelo chão. Em meio a sinalizações de aprovação do motorista, a cobradora afirmou que ao ver a mãe do suposto bandido aos prantos se dirigiu a ela e disse a seguinte frase: “seu filho já fez muita mãe chorar, agora é a sua vez”.

Ao longo da minha curta viagem a conversa seguiu seu rumo. A crítica a polícia era referente à periodicidade, demasiado espaçada de suas ações, mas não a atividade em si. Execuções em local de prisões, julgamentos sumários ancorados na presunção da culpa ao invés de processos justos baseados na Constituição, eram apresentados em sua fala de forma positiva. Expressões como: “não vai andar de camburão, vai andar de rabecão” e “tem que cortar o mal pela raiz”, permearam todo o bate-papo.

Tal cena me levou a uma reflexão, será que esses trabalhadores, cidadãos comuns, seriam dois sádicos? Ou será que mesmo passados mais de duzentos anos da Declaração dos Direitos do Homem, as noções de respeito à dignidade humana, direito a vida e a liberdade ainda não está plenamente estabelecidas entre nós? Creio que a opção correta não precisa sequer ser assinalada.

O caso concreto acima é apenas um exemplo da forma como muitos brasileiros e brasileiras pensam. A ideia de que há duas categorias de seres humanos, um integral, que merece ter acesso a seus direitos, e o outro que não pode ser classificado como tal por não ser um “humano direito”, ainda é bastante disseminada. Nós, militantes da esquerda e defensores dos direitos humanos não podemos nos eximir da tarefa de alteração desse quadro.

Se por um lado, questões como o combate a exploração sexual infantil, ao trabalho escravo e tantas outras já são vistas pela população como mazelas a serem erradicadas, por outro, há debates controversos no que se refere a luta pelo direito a memória e a verdade, a garantia de igualdade de direitos para os homossexuais, e o fim do extermínio da juventude negra. Isso ocorre porque essas temáticas estão relacionadas à valores que não estão amplamente difundidos na sociedade brasileira e, por isso são a todo momento passíveis de manipulação e retrocessos.

A participação organizada e massificada de movimentos sociais e partidos políticos nas Marchas das Vadias e da Maconha, e nas Paradas do Orgulho LGBT, são centrais porque colocam na pauta o debate sobre os valores que queremos disputar na sociedade, mas ainda não dão conta de todos os aspectos da multifacetada temática dos direitos humanos. Precisamos reforçar nossa atuação nesses espaços, mas também nos incorporar aos comitês pela Memória e Verdade em todo país, as manifestações e “escrachos” que vem acontecendo, monitorar, denunciar e esclarecer a sociedade sobre a perpetuação da tortura no sistema prisional brasileiro, e agir da mesma forma diante do crescimento da execução dos nossos jovens nas favelas e periferias do país. No que tange a esse ponto específico, é preciso que levantemos o tom de voz e cobremos também os governos que dirigimos ou dos quais compomos a coalizão uma nova postura da polícia. Toda semana recebemos notícias de atrocidades cometidas por aqueles que supostamente deveriam nos proteger, execuções como a do adolescente Talles Perreira na favela do Fogueteiro no Catumbi na última terça-feira não podem ficar impunes nem passar desapercibidas por nós.

Ainda no âmbito governamental, faz-se necessária uma maior ousadia no que tange a educação em direitos humanos. O governo precisa compreender a centralidade dessa temática na construção de uma sociedade mais justa, igualitária, e vocacionada para a transformação social. Tomar consciência disso significa introduzir nas diretrizes curriculares de forma transversal a defesa da dignidade de todos os seres humanos independente de classe social, gênero, raça, orientação sexual, e também de ter ou não cometido algum tipo de delito.

No Brasil ainda vemos a base dos direitos e da justiça sendo ignoradas de forma brutal. Pessoas condenadas sem julgamento a sentenças de penalidade máxima em um país em que a pena de morte não é permitida. Para mudar essa situação é necessário que transformemos essas causas em elementos da nossa luta diária, e reforcemos a todo momento em nosso ambiente de militância sua centralidade.

Tássia Rabelo é coordenadora nacional de Direitos Humanos da Juventude do PT e militante do movimento Fora da Ordem.

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